Crónica de Alexandre Honrado
Para cá da máscara
A manumissio era uma cerimónia de grande importância na antiguidade Clássica, durante a qual se libertava o escravo, ou se lhe devolvia a liberdade, sendo essa tarefa concretizada pelo magistrado que tocava o candidato à libertação com uma vara e lhe colocava depois um barrete sobre a cabeça acabada de rapar. Finda a cerimónia ficava em liberdade, isto é, sob os desígnios simbólicos de uma entidade do sexo feminino – Libertas ‒ que nas representações iconográficas aparece quase sempre personificada como uma bela mulher, envergando toga, com a vara numa mão e o barrete na outra e que inspira bastante mais tarde a revolução francesa e república portuguesa, sua herdeira.
A cabeça rapada – ou erguida –, o rosto a descoberto, orgulhoso da sua condição, com o poder de ser para lá da repressão ou dos mistérios, constitui portanto o conjunto de atributos maiores da liberdade e dos libertos, da autodeterminação e da consagração da autonomia. No seu oposto, está a máscara, o rosto escondido, cabisbaixo, dos escravos, a sombra (que é uma máscara) dos refúgios individuais, a procura da salvação para lá da exposição, o esconderijo, recursos de marginais, medrosos e refugiados.
A máscara tem relação direta com o que se esconde, o que se sofre, o que nega as suas emoções, o que ainda não é (como nas cerimónias de passagem de certas tribos africanas).
A máscara que é a mascus ou masca, o fantasma latino, é a maskarah da língua árabe (o mascarado, o disfarçado, o palhaço). é do salteador e do sofredor (como em zorro cuja mascarilha só cobre parte do rosto, em Batman, ambos justiceiros que fogem da realidade, ou a personagem Erik, no Fantasma da Ópera, exemplo entre exemplos, que foge da sua própria aparência) ou daquele que, por mais não ter como defesa, ou um outro rosto que o defenda, optam pelo objeto (abjeto) protetor, que colocam sobre o rosto que protege.
É lúdica, também, a máscara, como no Carnaval, um festival do cristianismo ocidental que ocorre antes da estação litúrgica da quaresma e que é percorrido pelo paganismo, pelo sensualismo, pela impunidade, pois a máscara (que assim não confere a liberdade ao indivíduo mas à sua representação em forma de máscara) retira o protagonismo a quem a usa, substituindo-o pela linguagem cénica que profere e que legitima o deslocamento na experiência e na sensibilidade do tempo, conferindo “poderes” provisórios e a “imortalidade” do corpo, dotando-o de um revestimento que transcende a pele (o revestimento fundamental, essencial) e o corpo (intérprete maior da mobilidade e o que representa no que sente e age quotidianamente). não esquecemos, claro, a máscara teatral, em especial a grega, onde as emoções do hipócrita – o ator ! – apareciam estilizadas (prazer, sofrimento, riso, choro, indiferença – em máscaras de um ritual próprio e de valoração antropológica ímpar.
Na atualidade, nesta era do hibridismo, sofremos a representação e a inscrição de novos rostos (por exemplo os novos rostos do racismo numa era de mundialização ou da variável máscara do populismo, numa época de desorientação e fragilidade, quando afinal somos multicultural, somos mestiçagem, somos a galeria aberta ao que quisermos sentir) que aparentemente chocam com a própria máscara, um rosto invariável, estático (na cor, na forma, nos símbolos que a acompanham), o que traz novas interrogações ao passo errante do presente e às cosmologias do futuro. Porém, uma certa tendência para a cultura do inumano e uma falência de valores perseverantes da natureza e do humano – apatia emocional, amnésia funcional, próteses afetivas, práticas patogénicas da imaginação, extremismos religiosos, políticos, sociais, analfabetismo emocional, ressurreição da barbárie… – fazem emergir máscaras de atitude na própria composição do tempo e na sua negação (a amnésia transcultural, a ignorância do passado, a despreocupação com algum futuro ainda possível, a prática de um imaginário preenchido pelo ‘presentismo’ e pelo imediatismo, numa nova construção de subjetividades).
Só somos, realmente, no outro e na partilha do rosto que nos age.
Nota: Esta é uma versão condensada do meu texto no livro Persona Pandémica, 2021.
Alexandre Honrado
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